sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Desde seu surgimento, em 1985, a teoria do Direito Penal do inimigo vem gerando uma grande celeuma no meio jurídico, porquanto prevê inúmeras mudanças radicais no atual paradigma penal. Desta forma, é um tema que merece destaque e, consequentemente, uma análise nos preceitos fundamentais trazidos por Jakobs. A polêmica teoria de Günther Jakobs vem provocando, conforme já citado, uma grande discussão no Direito Penal, sendo alvo de críticas, preponderantes aos elogios. No ano de 1985, em um seminário realizado em Frankfurt, Günther Jakobs – um dos principais discípulos de Welzel e atual catedrático emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito na Universidade de Bonn, Alemanha – enunciou, pela primeira vez, a teoria do Direito Penal do inimigo. Naquele momento, o autor, de forma crítica, assinalou o desenvolvimento de um Direito Penal parcial na Alemanha.
Com o Direito Penal do inimigo, o Direito Penal passa a ser prospectivo ao invés de retrospectivo. Fonte da imagem: http://atualidadesdodireito.com.br/robertoparentoni/2012/03/04/direito-penal-do-inimigo/
Com o Direito Penal do inimigo, o Direito Penal passa a ser prospectivo ao invés de retrospectivo. Fonte da imagem: http://atualidadesdodireito.com.br/robertoparentoni/2012/03/04/direito-penal-do-inimigo/
O discurso, que antes era de censura, reverte-se, em 1999, em defesa da criação de um Direito Penal destinado exclusivamente ao inimigo. O eminente autor citou que em muitos dispositivos alemães já havia indícios desta nova forma de aplicação do direito; destarte, a criação de um Direito Penal do Inimigo não seria ilegítima, visto que protegeria o Direito Penal tradicional – o destinado ao cidadão – de uma possível “contaminação”.  Cancio Meliá distingue os momentos tratados acima, aduzindo que a noção de Direito Penal no inimigo, proposta por Jakobs, na primeira aproximação (1985) é consideravelmente mais ampla que da segunda fase (a partir de 1999), mais orientada por delitos graves contra bens jurídicos individuais (de modo paradigmático, o terrorismo). Desde então, o Direito Penal do inimigo, como já referido, vem conquistando mais críticos do que adeptos. Frente a isso, Jakobs, em sua mais recente obra, tem procurado legitimar e justificar sua linha de pensamento.
Basicamente, a polêmica tese prevê a necessidade de haver uma divisão entre cidadãos e não-cidadãos (inimigos), com tratamento penal diferenciado para cada um desses grupos. Para isso, há a necessidade de criação de dois Direitos Penais. Ao fazer essa divisão entre inimigos e cidadãos, o autor, utiliza-se de uma base filosófica contratualista de Estado, em especial dos fundamentos de Rosseau, Hobbes, Kant e Fichte, ressaltando que esses pensadores, há muito, já teriam elaborado alguns conceitos sobre quem seriam os inimigos. Dentre as principais características do Direito Penal do inimigo, mister se faz salientar o momento em que ocorre a atuação penal. O Direito Penal passa a ser prospectivo ao invés de retrospectivo. Para Jakobs, o inimigo deve ser interceptado prontamente, em estágio prévio, devido a sua periculosidade, consagrando-se, pois, um Direito Penal do Autor. Nesta acepção, o infrator é punido pelo “o que ele é”, pelo perigo que representa.
Dentre as diversas críticas vertidas à teoria, destaca-se o fato de que ela vai de encontro ao sistema penal hodiernamente vigente – o Direito Penal do fato, que prevê punição tão somente se ocorrer exteriorização, por parte do indivíduo, de algum fato delituoso. O Direito Penal do inimigo parte de um pressuposto filosófico, que fundamenta a relação existente entre o Estado e a sociedade como sendo de base contratualista. O delito, para os pensadores que defendem essa tese do “contrato social”, rompe com o pacto estabelecido, de maneira que o delinqüente não mais pode usufruir dos benefícios da citada relação social; violando o pacto, deixa de participar do vínculo jurídico existente entre ele e os demais sujeitos. A visão do delinqüente, ou pelo menos de alguns deles como inimigos, bem como a ideia de sua exclusão da sociedade e do Estado – que hoje fundamenta a teoria – é muito antiga e pode ser encontrada nas perspectivas de diversos filósofos modernos (como os já citados Hobbes, Rousseau, Fichte e Kant), que trataram de discutir o conceito. Eugênio Raúl Zaffaroni vai mais longe, remonta à Grécia Antiga, ao dizer que desde Protágoras fala-se que “os incorrigíveis deveriam ser excluídos da sociedade”, de forma que o conceito de inimigo é construído como uma forma de legitimação do poder punitivo com o discurso de neutralizar o mal, eliminando obstáculos.
Rousseau e Fichte consideram todo delinquente, de per si, um inimigo. Jakobs, sem embargo, acentua que, não obstante, introduza estas concepções, em sua obra, não as ratifica, pois ressalva a importância de se manter um Direito Penal do cidadão. Salientando que a separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata. Muitos juristas renomados, tais como Zaffaroni, Luis Flávio Gomes, Ferrajoli e tantos outros exaltam a inconstitucionalidade da teoria Jakobsiana.
Juristas renomados, como Zaffaroni, Luis Flávio Gomes e Ferrajoli, exaltam a inconstitucionalidade da teoria Jakobsiana. Fonte da imagem: http://www.posugf.com.br/noticias/todas/1107-direito-penal-do-inimigo-profa-dra-daniele-romio-marchionno
Juristas renomados, como Zaffaroni, Luis Flávio Gomes e Ferrajoli, exaltam a inconstitucionalidade da teoria Jakobsiana. Fonte da imagem: http://www.posugf.com.br/noticias/todas/1107-direito-penal-do-inimigo-profa-dra-daniele-romio-marchionno
Em uma leitura à brasileira, percebemos que são inúmeras as características do Direito Penal do inimigo que impossibilitam sua aplicação em um Estado Democrático de Direito. Com a leitura do artigo 5º da atual Constituição Federal Brasileira, infere-se que é inimaginável dividir a sociedade em duas classes – uma de cidadãos e outra de inimigos – já que a igualdade entre todas as pessoas é tratada como cláusula pétrea. Com base nisso, muitos dos críticos enfatizam que não há razão de ser na distinção feita por Jakobs.  No mesmo sentido, se apresenta o artigo 6° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao dispor que “toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei”.
O conceito de pessoa, por sua vez, não é um conceito de Estado, mas de um Direito inerente ao ser humano, que transcende a qualquer soberania. Uma sociedade é formada por pessoas (que se revestem de todos os direitos e garantias próprios à individualidade). Em um paralelo, podemos afirmar que se uma pessoa pode deixar de ser pessoa para ser considerada inimigo, uma sociedade pode também deixar de ser sociedade relegar a tutela pelo Direito; tal discurso legitimaria, por exemplo, o genocídio e isso é/seria inconcebível. O que se percebe ao final é que a proposta de Jakobs não permite um rito processual adequado às garantias do indivíduo, pelo contrário, um verdadeiro procedimento de guerra contra o inimigo é declarado; ideia que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, justamente por suas bases em princípios e garantias que viabilizam o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa durante a persecução criminal. 
(por Ivan Carlos da Silva, especialista em Direito Penal e Processo Penal; doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais na UMSA – Argentina; professor de Direito e policial civil)

Bibliografia consultada: 
GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou inimigos do Direito Penal). In: Revista Jurídica Unicoc. Ribeirão Preto: Ano II, nº. 2, 2005.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2.ed. Brasília: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2006
JAKOBS, Günther, MELIÁ, Manuel C. Direito Penal do Inimigo – Noções e Críticas. 4 ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009
KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Trad. Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2008
MORAES, Vinícius Borges. Concepções Jusfilosóficas do Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 74, ed. RT, 2008
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Escala, 2006
SILVEIRA, Cláudio. O Direito Penal e o Inimigo. Artigo. In: Revista Informativa do MP/RO. Rondônia: nº. 021, 2008
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Trad. Jorge Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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